Fonte: Fórum Justiça
Hoje se encerra novembro, mês da Consciência Negra. Momento em que relembramos a história de Zumbi dos Palmares e Dandara, símbolos de resistência contra a escravidão, pela liberdade religiosa e cultural. À luz deste legado, refletimos sobre os desafios e as violações de direitos que a população negra enfrenta no Brasil todos os dias. E assim deve ser feito durante todo o ano.
É tempo de compreender a realidade das mais de seis mil comunidades quilombolas do nosso País e suas organizações que, mesmo após sofrerem inúmeras tentativas de eliminação da sua existência e modos de vida, ainda resistem. Desde 2016, com o golpe, os ataques por elas sofridos se intensificaram em um processo intenso de retrocessos do Estado democrático de direitos e das políticas públicas voltadas às comunidades quilombolas. Foi constatada uma crescente judicialização das demandas desta população, fazendo surgir coletivos de advogados populares quilombolas, como Joãzinho do Mangal (ARRUTI, BPQ#5, 2022). As Defensorias Públicas também despontam como instituição fundamental em sua atribuição de promover os direitos dos mais vulnerabilizados.
Neste contexto, o FJ, o Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Tradicionais, Ameríndios e Afroamericanos (LaPPA/IFCH/UNICAMP), a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), a Defensoria Pública da União (DPU), o Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro-Cebrap), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Conselho Nacional de Ouvidorias Externas de Defensorias Públicas do Brasil, realizaram em 2022, seminários regionais como parte do mapeamento nacional das ações judiciais e extrajudiciais das Defensorias Públicas junto às comunidades quilombolas. O mapeamento está inserido no projeto “Quilombos e acesso à justiça: atuação da Defensoria Pública”.
Em encontros de escuta ativa às lideranças e diálogo com atores das Defensorias Públicas (DPs) e academia, violações de direitos básicos, coletivos e individuais foram escancaradas, mas também apresentaram-se ações inovadoras e com potencial para serem replicadas. Nas cinco regiões do país, desafios similares foram encontrados, com relatos sobre a interseccionalidade das opressões que atravessam e impactam as comunidades quilombolas. Abaixo apresentamos um breve balanço dos seis encontros.
O racismo institucional e estrutural é central para entendermos o cenário, como apontou o coordenador-executivo da articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Biko Rodrigues, durante o encontro da Região Sul, “após três décadas da promulgação da Constituição de 1988, que determina a demarcação de terras quilombolas e povos originários, apenas 200 comunidades, entre as 6 mil existentes, foram titularizadas”. A falta de vontade política na titulação dos territórios também é um elemento comum à nível nacional, e as certificações conquistadas se deram após intenso processo de mobilização social.
Os conflitos territoriais e a questão fundiária perpassam não só pela busca do direito previsto no decreto 4887/2003, que regulamenta a demarcação de terras de remanescentes das comunidades dos quilombos, mas também pelo direito à consulta livre, prévia e informada prevista na a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na região Norte, as comunidades sofrem intensas violações envolvendo grandes empreendimentos, multinacionais, grileiros e monocultivos. No Pará, por exemplo, a população quilombola sofre com as intervenções da Brasil Bio Fuels (BBF) na região de Acará. Na Ilha de Marajó, o problema é a expansão da fronteira agrícola e o monocultivo. Em Estados, como Amapá, é urgente a aproximação da Defensoria Pública Estadual (DPE) com as comunidades quilombolas, que atualmente têm tido um diálogo mais próximo com o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU).
Nos diferentes estados da Região Sudeste, problemas similares são enfrentados. No Espírito Santo, lideranças relatam falta de água causada pela monocultura de eucalipto da empresa Suzano, que também tem ocasionado conflitos territoriais. O mesmo acontece em Minas Gerais com grandes mineradoras. As lideranças também relataram a importância da pauta ambiental e denunciaram o aumento do desmatamento, que perpassa a questão da soberania alimentar e nutricional, e a dificuldade em saber como denunciar de forma segura. Os casos ilustram o racismo ambiental, que se apresenta não só no impactos desproporcionais que a população enfrenta em decorrência da degradação ambiental, falta de água e poluição da terra e dos rios, mas também pelos licenciamentos e privatizações de áreas de conservação em território quilombola, como acontece em São Paulo, no Vale do Ribeira.
Na Região Centro-Oeste, o agronegócio é parte considerável dos conflitos fundiários e violações de direitos e destruição de biomas, por meio de queimadas criminosas e contaminação da água e do solo que afetam a saúde e a sobrevivência das 134 comunidades no estado do Mato Grosso. No mesmo estado, lideranças relataram guerra judicial pela reintegração de posse do território e criminalização das lideranças. É necessário e urgente que as Defensorias dos Estados do Centro-Oeste se aproximem e atuem mais fortemente na garantia dos direitos quilombolas.
No Nordeste, os grandes empreendimentos também foram mencionados, e a partir de 2010, com a intensificação dos conflitos, a DPE começou a se aproximar das comunidades no Piauí. No Rio Grande do Norte, a aproximação com a DPE também é bem recente, mas já é vista como uma aliada das comunidades. Por outro lado, na Paraíba as lideranças pontuaram que a justiça ainda é distante, e as prefeituras têm atuado como facilitadoras pois flexibilizam processos que defendem o território quilombola a favor dos grandes empreendimentos. No Maranhão, Estado com mais de duas mil comunidades quilombolas, o desrespeito ao direito à consulta livre, prévia e informada no tocante a obra da BR-135 foi citado, além do aumento do conflito armado e de lideranças ameaçadas, algumas inclusive por agentes do Estado. Também foi mencionada a troca constante de defensores, principalmente dos que começam a atuar na causa.
No Ceará, as lideranças destacaram o baixo número de conflitos em parte devido ao número reduzido de pedidos de titulação. No entanto, alguns direitos continuam sendo violados, como foi o caso da dificuldade em conseguir a vacina da covid-19 para as comunidades, dificuldade também enfrentada pelas comunidades em Pernambuco. A DPE/CE é distante, mas foi mencionado um período de maior aproximação, durante a gestão da ouvidoria externa de 2019-2021. Na Bahia, foi apresentada a necessidade de alinhar mais o diálogo com a DPE nas áreas de segurança, saúde e educação. As violações de direitos ocasionadas pela instalação de parques eólicos em territórios quilombolas também foi ponto da discussão, nos lembrando do importante debate sobre uma transição energética justa.
A rotatividade dos/as defensores/as que tratam das demandas também foi apontada como obstáculo em outros estados, já que faz com que as comunidades tenham que repetir os relatos constantemente e atrasa a resolução do problema. Com isso, destaca-se a necessidade da criação de cadeiras específicas para tratar de questões indígenas e quilombolas. Outro entrave ao acesso à justiça é a distância entre as comunidades e a DPE, comum em quase todas as regiões do país. Isso se dá pelo número reduzido de subseções das DPs no interior, falta de ouvidoria externa e dificuldade no transporte. Além disso, algumas lideranças relataram dificuldades para identificar as atribuições de todas as instituições e em como recorrer a elas, a depender da especificidade do conflito. É preciso que as comunidades tenham acesso à informações objetivas e de fácil acesso sobre as atribuições de cada instituição.
Para além das especificidades de cada Estado, demandas básicas foram recorrentes em todos os relatos, como a falta de políticas públicas em infraestrutura, saúde, educação quilombola e transporte. Soma-se a isso, a dificuldade no acesso à internet de qualidade. Também foi mencionado o desmonte do INCRA e das políticas públicas voltadas para a população quilombola e as dificuldades enfrentadas pela DPE e DPU, com muitas demandas e poucos núcleos especializados, baixo orçamento entre outras dificuldades. A atuação do Ministério Público junto às comunidades foi relatada em um grande número de falas, principalmente nos locais em que a DPE é menos ativa. Ainda, também foi notável muitos casos de ações individualizadas de defensores/as engajados na pauta, mas como destacou o defensor Igor de Sampaio, do Piauí, “os defensores/as ainda estão muito presos ao processo, e a judicialização por judicialização não é o caminho” e pontuou, “onde tem quilombo a defensoria tem que ir, não é um favor”. Para André Carneiro, Defensor Público Federal, o foco na defesa individual é devido à consolidação de um olhar colonial e ocidental e percebe-se a falta de um sistema de controle e conscientização eficaz, para promover a busca ativa.
Como pontuado por Vinícius Alves (FJ), é preciso pensar o direito para além dos processos judiciais, mas como um instrumento multidisciplinar, rodeado por várias epistemologias e cosmovisões e que contribui para a gestão social e implementação do direito. Entendendo a importância da religiosidade, conflitos históricos pela terra e dos costumes das comunidades que têm juridicidades relevantes. O papel do direito e os problemas inerentes a sua origem e consolidação também foram mencionados por lideranças quilombolas. Durante o seminário Nordeste I, Antônio Crioulo, observou que “não nos sentimos representados no direito, pois a lei é uma coisa morta, e quem executa tem vida. As pessoas vêm carregadas das suas identidades e compreensões do mundo, cada um faz a interpretação da lei a seu bel prazer.”
A importância da Ouvidoria-Externa da DP foi evidenciada tanto nas falas quanto nos resultados. Notou-se que nas localidades com presença da ouvidoria externa atuante havia maior aproximação dessas comunidades com a DP e melhores resultados nas ações de acesso à justiça. Como pontuou a defensora pública da Bahia, Kamile Alves, é importante que as lideranças participem ativamente neste espaço, ponto reforçado pelo defensor Gilmar Silva. Além disso, como sugerido por Arruti, é importante pensarmos na construção de uma instância de compartilhamento de know how, que facilite a colaboração nas ações, envolvendo as comunidades, organizações da sociedade civil, DPs, ouvidorias e demais instituições envolvidas.
Algumas Ações para Garantia do Acesso à Justiça
Apesar dos desafios, há ações em curso que têm garantido o acesso à justiça em algumas localidades. No Tocantins, dois projetos em andamento têm resultado na aproximação da DP com as comunidades, a Defensoria Pública Itinerante e a Defensoria Pública Quilombola. Nos atendimentos itinerantes, que foram perenizados, são realizados levantamentos de questões individuais e coletivas. No Pará, destaca-se a iniciativa da DPE, Mesa Quilombola, na qual a cada três meses ocorre um encontro para avaliar o andamento dos processos e o trabalho que vem sendo feito pelo Estado e União. A DPE/MG tem investido de forma extrajudicial, em parceria com Ministério Público, em medidas para o avanço da identificação e regularização fundiária por parte do governo do estado. No Rio de Janeiro, existe a “A Defensoria em Ação nos Quilombos”, que consiste no atendimento itinerante de demandas individuais nessas comunidades, articulando políticas e serviços, há também o intenso processo de litigância estratégica na Costa Verde. Na DPE de Goiás, há o projeto itinerante “Escuta Quilombo”, que tem visitado comunidades e feito registro das lideranças, e dos Núcleos de Direitos Humanos das defensorias estaduais. No Piauí, o projeto Vozes dos Quilombos, idealizado pela defensora Karla Andrade, tem levado a DPE aos territórios e promovido a escuta ativa a essas comunidades, e em diálogo com as lideranças chegam a soluções extrajudiciais que não demandam muitos gastos.
A DPE/BA também tem atuado em uma série de ações extrajudiciais, como na regularização de terras individuais, a partir da atuação junto com a prefeitura; articulando com autarquia para garantir o acesso à água; e com a polícia, a partir de diálogos com as comunidades e do pedido, para garantir a segurança no território. Além disso, incluíram as lideranças no grupo operativo da ouvidoria-externa. Na DPU na Bahia, há diálogo com a articulação quilombola da Universidade do Estado da Bahia em Juazeiro. No plano judicial, atuaram na proteção do território quilombola de Alagadiço e na garantia do acesso à água da comunidade de Serrote-PE, e estão em busca do acesso à energia elétrica para a comunidade de Lagoinha-BA.
Nos próximos meses, dados provenientes da pesquisa que teve os encontros de escuta como uma de suas etapas, vão gerar novos frutos que compartilharemos aqui. Consciência Negra é para todos os dias, e esperamos contribuir cada vez mais para garantir o direito de acesso à justiça das populações quilombolas no Brasil.