Por Franklyn Roger Alves Silva, Diogo Esteves e Elisa Cruz
Nosso sistema jurídico sempre foi cauteloso com as pessoas com deficiência ao reconhecer, conforme as circunstâncias, a sua incapacidade absoluta ou relativa de modo a evitar que a sua condição de vulnerabilidade pudesse facilitar a prática de atos fraudulentos ou simulados em seu prejuízo.
No Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, foi incorporada à nossa ordem jurídica interna a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova Iorque), lhe sendo atribuído o status de emenda constitucional, diante do permissivo constante do parágrafo 3°, do artigo 5° de nossa Carta.
Seguindo a tendência de modernização das normas processuais e de prestígio da autonomia da vontade das pessoas com necessidades especiais, houve também a edição da Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência e algumas modificações pontuais no novo Código de Processo Civil.
Os artigos 114 e 123, II, do Estatuto revogaram os incisos do artigo 3º do Código Civil e alteram seu caput, como também modificaram a redação dos incisos II e III do artigo 4º do código.
Agora, apenas as pessoas com idade inferior a 16 anos são reputadas absolutamente incapazes, sendo consideradas relativamente incapazes as pessoas entre 16 e 18 anos, os pródigos, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos e aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade.
Apesar de significar notório avanço, já que as novas normas reforçam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e buscam conferir maior isonomia às pessoas vulneráveis, alguns aspectos materiais e processuais causarão certas dificuldades práticas com a entrada em vigor do estatuto, que ocorreu em janeiro de 2016, na forma de seu artigo 127.
Dentre as inúmeras modificações promovidas pelo estatuto, podemos indicar duas alterações com repercussão direta na atuação institucional da Defensoria Pública. A primeira delas diz respeito ao reconhecimento da ampla legitimação extraordinária da instituição para, em nome próprio, tutelar os interesses das pessoas com deficiência.
Na forma do artigo 79 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, “o poder público deve assegurar o acesso da pessoa com deficiência à justiça, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, garantindo, sempre que requeridos, adaptações e recursos de tecnologia assistiva”.
Essa é a mesma linha de proteção estatuída pelo o artigo 4º, incisos X e XI da Lei Complementar 80/1994, entregando à Defensoria Pública a importante função de promover a ampla defesa dos direitos individuais e coletivos das pessoas com deficiência, por causa de sua vulnerabilidade.
A regra contém uma autorização expressa e uma limitação implícita: apenas poderá a Defensoria Pública atuar como legitimado extraordinário na defesa de direito individual alheio “na defesa dos direitos fundamentais” do necessitado; e só poderá atuar quando o titular do direito restar impedido de atuar em nome próprio.
Ações coletivas com o propósito de implementação de medidas assistivas e inclusivas, implementação de políticas públicas e muitas outras providências farão parte das missões institucionais da Defensoria Pública na tutela de interesses das pessoas com deficiência.
Outro aspecto processual a ser analisado consiste na utilidade da interdição regulada pelo novo CPC, diante das normas existentes na Lei 13.146/2015 e a possibilidade de a própria Defensoria Pública instaurar o procedimento de jurisdição voluntária. Essa questão vem sendo muito debatida na doutrina civil, especialmente sob a ótica da manutenção ou não do instituto, já que ele não se confunde com a curatela.
O artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência deixa de prever expressamente a interdição, submetendo a pessoa com deficiência ao regime de curatela, quando necessário, abarcando apenas os atos de caráter negocial e patrimonial. Houve, também, alteração na redação dos artigos 1.768, 1.769, 1.771 e 1.772 do Código Civil, que tiveram a palavra “interdição” substituída por “curatela”.
Na doutrina, há quem aponte a insubsistência da interdição, por causa das inúmeras alterações promovidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência[1], já que a curatela do novo sistema possui limitações ao seu exercício, sempre em vias de prestigiar a autonomia da pessoa com deficiência.
Seguindo outra vertente, alguns autores têm se posicionado no sentido de reconhecer a subsistência do procedimento da interdição previsto no novo CPC, posição com a qual concordamos[2].
Sabe-se que a interdição é o ato pelo qual o juiz reconhece a incapacidade de uma pessoa e lhe retira, nas hipóteses legalmente previstas, a administração e a livre disposição de seus bens; curatela é “o encargo público, conferido, por lei, a alguém, para dirigir a pessoa e administrar os bens dos maiores, que por si não possam fazê-lo”.
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência determina em seu artigo 12, que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal para todos os aspectos da vida (item 2), cabendo ao Estado assegurar que essas pessoas não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens (item 5).
Na mesma linha é o artigo 84 da Lei 13.146/2015, que confere à pessoa com deficiência o exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas e a sua submissão à curatela torna-se uma medida de exceção, restrita aos atos de natureza patrimonial e negocial, na forma dos parágrafos 1º e 3º dos artigos 84 e 85 da lei em comento.
A disciplina do procedimento de jurisdição voluntária subsistirá como o instrumento necessário para a nomeação do curador bem como para a avaliação do grau de autonomia da pessoa com deficiência, cabendo ao juiz, dentro das limitações do artigo 85 do estatuto definir a extensão da atuação do curador, além de exercer o controle periódico da curatela, como determina o parágrafo 4º do artigo 85 da Lei 13.146/15.
Paralelamente ao rito da interdição, o artigo 1.783-A do Código Civil introduz um outro procedimento, destinado à nomeação de apoiadores para a tomada de decisão. Trata-se de um processo por meio do qual o deficiente escolhe ao menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.
Admitindo-se a sobrevivência da interdição, é importante observarmos o artigo 720 do CPC/2015, especialmente quando aduz que os procedimentos de jurisdição voluntária terão início “por provocação do interessado, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, cabendo-lhes formular o pedido devidamente instruído com os documentos necessários e com a indicação da providência judicial”.
A redação dessas disposições gerais relativas ao procedimento de jurisdição voluntária confere à Defensoria Pública, na qualidade de instituição, legitimidade extraordinária para a propositura da ação interditória.
Portanto, a Defensoria Pública ganha mais um reforço normativo para a defesa dos interesses da pessoa com deficiência, seja pela legitimação extraordinária ampla, seja pela possibilidade de requerimento de interdição.
[1] TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte II. Disponível emhttp://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI225871,51045-Alteracoes+do+Codigo+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com, acesso em 25/10/2015.
LÔBO, Paulo. Com avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes, acesso em 25/10/2015.
[2] SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte 2). Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-ago-07/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-traz-mudancas, acesso em 25/10/2015.
STOLZE, Pablo. É o fim da interdição? Disponível emhttp://pablostolze.com.br, acesso em 28/2/2016.
Fonte: ConJur