O projeto “Histórias de Defensor (a)” desta semana traz uma entrevista especial com um dos defensores públicos que ajudou a construir a história da Defensoria Pública no Brasil: Roberto Gonçalves de Freitas, que está na Defensoria do Piauí há 33 anos.
Com seu jeito peculiar e espontâneo, ele narra à equipe de comunicação da ANADEP quais foram os principais desafio à frente da Associação Nacional, da qual foi presidente de 1999 a 2003. Segundo ele, a implantação das Defensorias Públicas de Goiás e de Santa Catarina estiveram constantemente na pauta da Associação, em meio às lutas legislativas.
Foi na gestão do Roberto, por exemplo, que foi realizado o I Congreso Brasileiro da Defensoria Pública, em 2000, na capital Fortaleza (CE). Hoje, o CONADEP é considerado o maior evento da Defensoria Pública brasileira e visa ao debate sobre os principais temas relacionados a instituição e o papel da defensoria e do defensor público na sociedade.
Durante a entrevista, ele conta as curiosidades sobre o trabalho associativo para levar a Defensoria Pública para todos os cantos do Brasil. Há histórias de resistência, de vitórias e de conquistas, entre elas, a tramitação e promulgação da EC 45/2004, considerada um marco na história da Defensoria Pública, pois consagrou a autonomia administrativa, funciona, e a iniciativa da proposta orçamentária da Instituição, representando um importante passo para a sua estruturação, desde a aprovação da Constituição Federal, em 1988. Confira abaixo na íntegra.
ANADEP –
Há quanto tempo você é defensor público? Por que decidiu ingressar na carreira? Como foi este ingresso?
Ingressei na Defensoria Pública do Estado do Piauí em 1986, através de concurso público. Havia feito uma pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e retornei para o Piauí em 1985. Ao chegar, fiquei sabendo do concurso para defensor público. Nessa época a Defensoria integrava a Secretaria de Justiça do Estado, somente depois veio a se emancipar.
O senhor foi presidente ANADEP de 1999 a 2003. Quais os principais acontecimentos desse período?
Quando estive na presidência da ANADEP tínhamos muitas demandas nos locais onde o serviço era deficitário. Lembro que as duas Defensorias mais organizadas eram a do Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul. Havia uma reinvidicação muito grande em estados onde não existiam Defensorias Públicas. Nesse época, fui a Goiás para audiência pública na Assembleia pedindo a criação da Defensoria goiana. Uma curiosidade: meu pai era amigo de infância do reitor da Universidade Católica de Goiânia e conseguimos falar para o Curso de Direito de lá, pois tínhamos que abrir as mais variadas frentes de abordagem.
Já em Santa Catarina, onde a Defensoria ainda não existia e, graças ao esforço de alunos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aconteceu um debate sobre a Defensoria em Santa Catarina. Comparecemos e mostramos o que era a Instituição e as suas vantagens. Tempos depois retornei, já como ex-presidente, para participar do brilhante esforço da Unochapecó, através da professora Maria Aparecida Caovilla pela criação da Defensoria Catarinense.
Em São Paulo, o mundo jurídico nos ignorava. Foi o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), através dos professores Paulo Sergio Pinheiro e Sergio Adorno, que se interessaram pelo tema e participamos de um interessante debate na Faculdade de Direito. Era um trabalho de bandeirantes, desbravando territórios. Outra dificuldade era a falta de apoio às Defensorias. Na verdade, o sistema funcionava com duas vigas mestras: o improviso e o paliativo. A assistência era sempre um arranjo porque para o pobre de qualquer jeito servia. Enfim, a Defensoria tinha o mesmo tratamento daqueles a quem devia cuidados. A assistência jurídica existia à imagem e semelhança dos pobres, que assistia sem recursos e com muitos problemas.
Em muitos momentos tive de ir a diferentes estados por causa de greves. A insensibilidade e descaso obrigavam as defensoras e defensores ao recurso extremo da greve. Muitas vezes, fui a vários estados negociar o problema. Nessas ocorrências eu tive um apoio indireto: eu era conselheiro federal da OAB. Isso me dava convivência com pessoas de todos os estados. Desse modo consegui fazer um trabalho de abordagem que ajudava muito a vencer resistências, que foi fundamental na articulação para o acesso que tive em função da minha condição. Em alguns poucos casos, tive resistência de setores conservadores que desejavam o velho sistema dos dativos.
Um exemplo bizarro aconteceu no Espírito Santo. O governador criou por lei a figura do Defensor Público Temporário, por livre nomeação com a exigência de que não fosse servidor público. O presidente da ADEPES, Florisvaldo, era conselheiro da OAB/ES e pediu ao Conselho Federal da OAB que ajuizasse ação de inconstitucionalidade, que foi aprovada e impetrada. Fui ao Ministro Marco Aurélio Mello pedir a liminar em pleno mês de janeiro e, no plantão, concedeu a liminar, suspendendo a monstruosidade capixaba.
E qual foi a maior conquista da Defensoria Pública no período que o senhor foi presidente?
O grande fenômeno nesse período foi a EC 45/04. Nela se rediscutia o funcionamento da Justiça. Com muito esforço de defensoras e defensores de todo o Brasil com os seus parlamentares, tivemos lugar nas audiências públicas na Câmara e no Senado. A pauta da Defensoria era a menos corporativa: dizia respeito à eficácia da Justiça para a cidadania empobrecida. Durante as audiências públicas a nossa mensagem era a mais cativante. Não éramos corporativos e tínhamos uma vinculação real com a causa do pobre. Isso foi reconhecido de imediato na Câmara dos Deputados, onde a relatora deputada Zulaiê Cobra (PSDB/SP) convenceu-se da nossa causa e garantiu a nossa pauta no relatório.
Havia manifestações corporativas reacionárias que buscaram sabotar a Defensoria Pública. Existia também uma sugestão de que se alterasse a letra do art.134 da Constituição Federal dando a seguinte redação: O Estado facilitará a assistência judiciária gratuita.
Com a ajuda de jurista com enorme prestígio na época, tive acesso antecipado a essa proposta de redação e, por isso, conseguimos impedi-la. Esse ataque na própria essência da ação da Defensoria consumiu grande parte de nossa ação na tentativa de anulá-lo, mas conseguimos. No entanto, não chegamos a tempo de inserir a Defensoria nas figuras institucionais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), porque o projeto já estava sendo formatado.
Quando pude conversar com o relator da área, deputado Marcelo Deda (PT/SE), ele se convenceu da necessidade da presença da Defensoria no CNJ, mas confessou-me que o pacto já havia sido acertado e se ele reabrisse o tema com a inclusão da Defensoria, as forças reacionárias que não aceitavam o CNJ iriam reabrir toda a confusão para impedir a criação do Conselho. Desse modo, envolvidos na luta para preservarmos o espaço que havíamos conquistado na Carta de 88, não pudemos dar atenção à pauta do CNJ e ficamos de fora.
Conte-nos sobre a atuação internacional da ANADEP
Foi na minha gestão que se iniciou a atuação internacional. Participamos do 1º Congresso Latino-Americano no Chile, que serviu de passo inicial para a nossa integração. Nesse tempo, no Rio Grande do Sul, fizemos um Congresso do Mercosul, em Canela, coordenado pelo defensor Ladislau Cochlar Jr, vice-presidente da ANADEP na época. Depois tivemos o Congresso da Costa Rica, onde se montaram as bases para a criação da AIDEF, instalada em grandioso congresso no Rio de Janeiro.
Como você vê a Defensoria Pública do Piauí hoje?
O Piauí preservou a Defensoria na perspectiva institucional, a sua carga de poderes de Estado é formalmente estabelecida e sem sobressaltos. Entretanto, o tratamento orçamentário ainda é injusto porque a Defensoria não é uma instituição perdulária com os recursos públicos, vive nos seus limites e os seus serviços atendem diretamente aos mais necessitados. Mesmo assim, se percebe um tratamento virtualmente discriminatório na partilha do orçamento. Resta ainda um longo trabalho de afirmação do nosso papel na defesa do nosso povo para convencer as demais autoridades.
Qual foi o caso que mais te marcou durante sua atuação?
Após 33 anos de atuação vê-se muita coisa. Os dramas humanos são ampliados pela ocorrência da pobreza. Como diz o provérbio: na casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão . Nunca poderei esquecer um caso em que uma família veio adotar um rapaz com problemas de toda sorte, inclusive neurológicos, quase um vegetal. Eles já o criavam há muito tempo. Os pais queriam assegurar uma pensão para aquela pessoa após a morte deles. Eles já tinham outros filhos e os haviam criado. Era pura dedicação e amor. Coisas assim fazem a gente ainda acreditar na humanidade.
Qual mensagem gostaria de deixar às defensoras e defensores públicos que estão na carreira?
A Justiça está acima e além das ideologias.
Uma frase que te motiva
O caminho da Defensoria é o trabalho. Ninguém consegue combater o trabalho. Quem trabalha sempre será respeitado. O batente é a nossa escada.